segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"Sobremesa"



Mais um dia havia que findado e as preocupações laborais deixadas para trás. Depois de um jantar cuja ementa já não me recordo, regado com um vinho tinto do qual nada sei, era chegada a altura da "sobremesa".

Tudo em volta desapareceu como que se de uma encenação momentânea se tratasse. Como que se a vida não passasse de uma sucessão de cenários construídos e programados, e nós não passássemos de pequenos fantoches vivendo e revivendo a triste história que um medíocre argumentista deixou sobre a mesa de um bar, na sua por si só medíocre vida outrora escrita por outro idiota ainda pior. Uma pobre sucessão de bêbados rabiscando a vida real!

Aquele momento era a excepção. 
Naquele momento éramos uno, ou pelo menos estavamos prestes a ser. 
De tons quentes algures entre o amarelo e o vermelho lá estava ela, inerte. Nunca lhe havia conhecido outras cores e ainda bem, estas sempre a haviam favorecido. 
E o seu cheiro? Um toque de fogo timidamente cortado por um aroma cítrico que inebriava quem se atrevia a passar perto. Esse cheiro que eu trazia na memória desde sempre. Desde o tempo em que nem eu próprio tinha consciência disso.
Puxei-a para mim e calmamente comecei a descobri-la. Fi-lo sem pressas. Porquê apressar um momento que os próprios Deuses fariam parar se assim lhes pedisse? 
Aos poucos o seu interior revelava-se e era tão perfeito quanto imaginara. A sua fragrância natural intensificava-se cada vez mais, roubando-me a concentração segundo a segundo.
Já não me dominava. Já não a dominava. Tudo estava na mão do acaso. Na minha mente ribombava furiosamente uma e outra vez um cru e rude pensamento... "Eu vou comer-te!"
E como que se o seu corpo se dividisse em perfeitas porções, uma após a outra iam deixando de fazer parte de si e entravam no espaço meu ser.
Poucos minutos embora intensos haviam passado e era chegado o momento pelo qual tanto havia esperado. O momento no qual culminavam e ganhavam sentido todos os momentos que o haviam antecedido. "O último gomo".

A intensidade do acto deixara nas minhas mão a sua essência tornando-as trapaceiras e escorregadias. Foi então que o meu mundo ruiu. Como que em câmara lenta vi aquele "último gomo" escapar-me das mãos, sucumbindo inanimado nas tábuas do velho soalho sem que nada pudesse fazer.
Senti um nó no estômago. A minha vontade era explodir. Merda...
Isto não pode estar a acontecer. Não comigo! Não agora!
Haverá pior sentimento que estar a comer uma laranja e o último gomo cair ao chão?

Merda! Merda!! Merda!!!

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